domingo, 3 de janeiro de 2016

Someday de Beagá


Ela faz macarrão, o irmão mais velho entra na cozinha, oferece ajuda. A menina mulher pergunta se ele quer picar os ingredientes para o molho, ele faz uma careta mas resolve pegar a tábua dentro do armário e a faca na gaveta. Ele mal imagina, mas sempre foi o porto seguro dela, o amigo, pai, conselheiro, protetor. Os dois trocam um olhar repleto de respostas de perguntas não ditas numa cozinha abafada e silenciosa, o mais velho impaciente resolve colocar uma música no já surrado celular, de repente fica em dúvida se a irmã conhece a música que está prestes a tocar, "Mallu já ouviu essa música?", e começa a tomar conta do ambiente a melodia de Someday do The Strokes, ela começa a sorrir, um sorriso tímido que vai tomando conta de seu rosto sem a mesma perceber. Ele olha para ela com aquele olhar interrogador, do tipo quero saber o que você está pensando, sua sobrancelha se arqueja num ar de mistério, na tentativa de tentar descobrir telepaticamente o que a irmã caçula está pensando. 
Mallu viajou para uma noite de três meses antes que havia passado em outra cidade, e talvez seja por causa dessa viagem mental que não percebeu o olhar curioso do irmão. Ela se viu numa cozinha abafada, mas muito menor do que a da sua casa, menor ainda porque corpos se misturavam e se apertavam, disputando um lugar numa pia de um cubículo que nada mais era do que um apartamento em Minas Gerais. Eram amigos tentando fazer uma macarronada ao molho branco acompanhada de bacons caramelizados, quem a visse acharia que era uma chefe de cozinha, mal imaginavam que ela mal sabia fritar um ovo. 
Os cinco amigos riam incansavelmente, a primeira garrafa de vinho vazia jogada sobre a mesa da sala começava a fazer os seus primeiros efeitos, alguém fazia um comentário idiota sobre a palestra de Psicologia Criminal que alguns deles tinham assistido no dia anterior e todos se colocaram a rir, um deles se queimou na panela quente e o outro resolveu abrir uma garrafa de Catuaba, alguém comentou que aquela bebida aumentava a libido, Mallu olhou de canto de olho para um dos meninos, ninguém percebeu, nem mesmo ele, ela respirou profundamente decepcionada. 
No apartamento o cheiro do macarrão se misturava com o cheiro forte da fumaça de paiero que vinha dos outros meninos que fumavam na sala enquanto esperavam a comida ficar pronta. Mallu terminou de beber o resto de vinho que tinha na sua taça, preparando-se para a Catuaba. Ficou pensando o quanto aquela atmosfera possuída do calor, do cansaço daquele longo dia, do cheiro de cigarro e do álcool no sangue lhe fazia feliz, uma felicidade sutil que ela nunca imaginou que pudesse sentir, mas que apareceu  assim de repente e ficou ali a possuindo. 
Alguém comentou que uma música faria bem, todos olharam para o dono do apartamento que segurava o notebook no colo, preparando-se para assistir o jogo de futebol que estava para se iniciar, o apê era pequeno, tinha vários livros espalhados pelos pequenos aposentos e não havia espaço para televisão. Ele perguntou se alguém gostava de indie, Mallu soltou um eu e o restante dos meninos falaram que podia ser qualquer música e assim Someday do The Strokes começou a tocar, e ela tocou várias vezes até o dia de Mallu ir embora. Virou trilha sonora da viagem e da estádia dela naquele pequeno apartamento perdido no mundo. O seu refrão se ecoou na janta, no café da manhã, nas brigas dos amigos, nos momentos de felicidade, nos beijos perdidos, nas noitadas e até nos fones de ouvido já no aeroporto na hora de voltar para casa. 
E agora ela tocava novamente, naquela cozinha espaçosa e vazia e ali não tem os amigos, as garrafas de vinho, a catuaba, os cigarros de palha (que ela odiava), nem a cumplicidade daqueles bons dias, Mallu sente apenas nostalgia. Leva um susto ao olhar para a cara séria do irmão e como se tivesse despertado do devaneio, apenas responde a pergunta feita anteriormente pelo mais velho sobre se ela conhecia a música "Lógico que conheço essa, super velha e clássica." Ele sorri e suspira sabendo que tem muito mais por trás daquela resposta, só para alfinetar diz "Sei...". E ela entendendo a indireta daquele "sei" que queria dizer quero mais explicações sobre isso, ela murmura " Me lembrou Beagá" e nisso a música acaba, deixando tudo silencioso novamente.

9 comentários:

  1. Olá, Bianca. Tudo bem?

    Adorei o texto! Sua escrita é tão rica em detalhes e envolvente, quando dei por já estava junto aos irmãos ouvindo, The Strokes.

    Até mais. Feliz 2016! http://realidadecaotica.blogspot.com.br/

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  2. Caramba, que texto maravilhoso!
    Juro pra você que enquanto eu lia eu conseguia ver tudo o que estava acontecendo, amei muito ♡
    Vou correr e ouvir Someday porque eu nunca ouvi e agora fiquei louca de curiosidade haha
    Beijos!
    Sem ser Blasé

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    1. hahahaha Muitíssimoo obrigado Thainá! hahahah Escuta lá e vê se aprova! hahah

      Beijinhos

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  3. Que escrita mais simples e gostosa de se ler, Bianca!
    Adorei seus textos e esse em especial porque AMO essa música. O mais engraçado é que também me lembra uma viagem, pra Campinas, me lembra porque foi uma das músicas e bandas que eu mais ouvi enquanto estava indo para um congresso na UNICAMP... É engraçado como as músicas têm o poder de fazer isso com a gente, né? Trazer lembranças, nos absorver para um mundo totalmente alternativo, sabe-se lá onde...
    Preciso dizer mais uma vez que adorei o seu texto? hahah
    Beijoss
    www.vidaemmarte.com.br

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    1. Nossa Kathleen quuue legaaal!!! Adoroo congressos!!! E a UNICAMP <3
      Exatamente sempre acaba que elas viram trilha sonora das nossas vidas, fico muito feliz de ver que é um sentimento não só meu hahaha

      Muitooo obrigadaa!

      Beijos!

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  4. Adorei o texto,mostra como nossas vidas são feitas de devaneios e como elas se adaptam a certas trilhas sonoras, ou seja, a música está muito encorporada em nosso dia a dia podendo aflorar memórias boas ou ruins ou simplesmente nos lembrar um momento como foi o caso aqui do texto.
    Achei o texto bem sutil, compassado e maravilhoso de se ler...
    Estou seguindo o blog!
    Beijinhos!

    http://meusdespropositos.blogspot.com.br/

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    1. Que comentário lindooo! Você expressou em palavras o que penso a respeito de músicas!! Fico muito feliiz que tenha gostado do texto!!

      Beijinhos Bi

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  5. Adorei o texto,mostra como nossas vidas são feitas de devaneios e como elas se adaptam a certas trilhas sonoras, ou seja, a música está muito encorporada em nosso dia a dia podendo aflorar memórias boas ou ruins ou simplesmente nos lembrar um momento como foi o caso aqui do texto.
    Achei o texto bem sutil, compassado e maravilhoso de se ler...
    Estou seguindo o blog!
    Beijinhos!

    http://meusdespropositos.blogspot.com.br/

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